CRISES E MAIS CRISES

O ser humano busca a estabilidade, mas há um paradoxo no processo. A humanidade parece dedicar dois passos ao caos enquanto avança um passo na direção da ordem. Responder a essa questão com a afirmativa de que é assim mesmo, pois o homem é complexo, na verdade, responde pouco e preguiçosamente.
Houellebecq

O jogo humano entre crise e equilíbrio é imemorial, atávico, genômico. Enquanto deseja a tranquilidade, o homem deseja, na mesma medida, os obstáculos que põem movimento na vida e conferem valor aos tempos de paz e sossego. Ser humano — ou, antes, ser um organismo vivo — é sentir os estímulos do ambiente e responder à altura. Daí a importância desse jogo de crises que, ingenuamente, várias pessoas reputam ruim e desnecessário. A mesma ingenuidade que só enxerga uma das faces de qualquer utopia.

Michel Houellebecq é o escritor francês mais bem sucedido do início do Século XXI. Dentre inúmeras façanhas literárias e mundanamente públicas, Houellebecq leva a pecha de profeta. Segundo muitos, ele previu algo da derrocada do projeto de unificação europeia, da islamização da Europa e do movimento dos coletes amarelos. No início da Pandemia do novo coronavírus, ele foi taxativo. Afirmou que o impacto da doença sobre os níveis de empatia seria nulo em escala global. As profecias de Houellebecq nunca são otimistas — é necessário dizer. Seu ricto debochado, que nunca vem desacompanhado de um sopro, as bochechas infladas, os lábios colados, esteve em várias entrevistas no início de 2020 quando a França via os números de infectados e de mortos crescerem em plena primeira onda.

O romancista-profeta parece apostar na tendência humana pela crise — escolha que muitos de nós fazemos desde o início da Pandemia. Contudo, esquecemo-nos de que atrás dos nossos desejos mais viscerais pelos obstáculos existe o apelo da aventura e do oásis a ser conquistado. Por mais que exista uma vontade enorme de que volte ao normal, há essa interferência. O bicho da discórdia salta da copa das árvores ou, então, deixa o fundo da escura caverna da aurora dos nossos dias.


Atenas, Grécia
Apesar de trágico, é interessante observar como a desobediência civil e a tolerância à tal desobediência civil, no estado de crise sanitária, seguem juntas. Numa metrópole como São Paulo, as festas clandestinas deixaram de acontecer apenas nos finais de semana para ocupar todas as noites, de domingo a domingo. A moda do comportamento negacionista ocupa um lugar no panteão dos valores descolados. Curiosamente, entre marmanjos, há muito, distantes da adolescência. Comportamentos que a perplexidade do resto da população nem chega a arranhar.

O jogo de que tratamos, como qualquer baixo instinto, pode ser amenizado, mas nunca zerado. No plano de fundo, sempre haverá saltos, entre a crise e o mar da tranquilidade, ainda que os mecanismos civilizatórios condenam bocas e narinas à mostra em plena Pandemia, enfim, ainda que vidas não sejam apenas números divulgados nos telejornais das vinte horas.

Percorrer um vale cheio de obstáculos, muitos deles desejados no âmago do ser, é algo que ecoa em todo o universo: está no micro e, também, no macro. Das origens cosmológicas do pensamento grego aos delicados mecanismos da vida como a homeostase. Da reação de uma célula contra o caos de metabólitos acumulados no citoplasma à reação dos pré-socráticos ao pensamento mágico (à religião grega) preponderante ao redor da acrópole. Células, organismos, tribos, crise, transformações, equilíbrio e mais crises. 
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Por André Ferrer. Direitos do autor. 17/06/2021

Comentários

  1. Muito bom. Me questiono sempre porque tanto negacionismo, mas hj acredito q para alguns, mais vale arriscar a vida do q perder a festa. Ou talvez se achem inatingíveis. Bom, de qqr forma, nos, psicólogos, nos debrucaremos sobre esse fenômeno de anti-empatia por décadas.

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    1. Querida Nadia, este já é um verdadeiro nicho profissional dentro da psicologia. Pode crer!

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